Recuperação judicial: exclusão das SPEs com Patrimônio de Afetação

O Caso do grupo empresarial João Fortes Engenharia

Antes de adentrar no tema principal deste artigo, que é o Caso João Fortes Engenharia, é necessário esclarecer alguns institutos jurídicos. A Recuperação Judicial é um mecanismo importante para viabilizar a manutenção de sociedades empresárias em situação de crise, de modo a privilegiar a visão das mesmas como fontes geradoras de empregos e bens, além de representar uma forma de preservação do cumprimento de suas funções sociais, e os interesses de todos os seus credores. Em resumo, em caso de crise econômica e financeira, o pedido de recuperação judicial evita a decretação de falência. O instituto está previsto na Lei 11.101/2005, atualizada recentemente.

Agora o que muito se relaciona à recuperação judicial, a criação do chamado Patrimônio de Afetação das incorporações imobiliárias, se deu em resposta a uma enorme crise financeira de uma das mais importantes incorporadoras imobiliárias do Brasil durante os anos 90, a Encol, que decretou falência e deixou mais de 40 mil adquirentes de unidades sem seus apartamentos. Durante o processo, foi constatado que a Encol misturava as receitas e despesas de todas as suas incorporações, inclusive os recursos obtidos de instituições financeiras. Essa mistura foi apelidada de “bicicleta”, pois os recursos dos novos empreendimentos financiavam os antigos, sendo esta forma de gestão a principal causa da crise generalizada da aludida empresa.

Diante de tal cenário, foi necessária a criação de uma obrigação do incorporador: a de segregar e proteger o patrimônio com o objetivo de trazer maior segurança jurídica aos stakeholders – todas as partes interessadas, sejam investidores, empregados, clientes adquirentes ou instituições financeiras – em caso de recuperação judicial, protegendo a incorporação afetada contra riscos de outros negócios da incorporadora, evitando desvios de recursos (artigo 31- A da lei 4.591/1964). Isso foi denominado de Patrimônio de Afetação (“PA”). Vale ressaltar que a sua legislação criadora nada disse sobre as sociedades de propósito específico (“SPE”), tornando-se necessária uma praxe de mercado e exigências bancárias para o tratamento da questão.

Nesse sentido, esclarecidos tais pontos, e volvendo-se ao tema principal deste artigo, em meados de abril de 2020, a 4ª Vara Empresarial do Rio de Janeiro, do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ), concedeu liminar ao pedido de recuperação judicial protocolado pelo grupo empresarial João Fortes Engenharia, composto por 63 empresas (dentre elas as SPE do grupo e sua holding) – conhecido por atuar no setor imobiliário há mais de 50 anos. Tal decisão refletia, segundo muitos especialistas, em prejuízo aos credores, pois todas as dívidas do grupo, a fim de que fossem eliminadas, possivelmente seriam parceladas e reduzidas, dívidas essas que somavam 1,3 bilhão de reais.

Ocorre que, da referida decisão, foi interposto um agravo de instrumento pelo Banco Bradesco, o qual argumentou que as SPE do grupo empresarial não deveriam fazer parte da recuperação judicial porque possuíam a proteção da lei através do instituto do Patrimônio de Afetação. O enunciado 628 da VIII Jornada de Direito Civil corrobora a interpelação, e é taxativo em excluir a submissão dos patrimônios de afetação à recuperação judicial, isso porque, segundo ele, tal patrimônio “é alocado em um compartimento separado do patrimônio geral do instituidor, onde permanece incomunicável até que cumprida sua função” (que é a entrega da obra e pagamento de todos os credores da incorporação imobiliária).

Em outubro de 2020, a 7ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro deu parcial provimento ao agravo de instrumento interposto- excluindo da recuperação judicial as SPE com Patrimônio de Afetação, o que levou a João Fortes Engenharia a recorrer da decisão ao STJ. O Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, então, suspendeu a decisão acima do TJRJ, por falta de jurisprudência consolidada sobre o tema.

Tudo mudou com uma decisão da 3ª Turma do STJ que, em maio de 2021, indeferiu pedido de recuperação judicial do grupo Esser, submetido ao regime de patrimônio de afetação, ou seja, empresas atuantes no ramo imobiliário submetidas a tal regime estavam impedidas de requerer a recuperação judicial do todo do grupo econômico.

Agora baseado em tal decisão, o Bradesco pediu a revogação da liminar inicialmente concedida à João Fortes Engenharia, de forma a proteger as SPE submetidas ao regime de patrimônio de afetação. A revogação foi efetivamente concedida pelo relator do caso impedindo o prosseguimento da recuperação judicial e revogando os efeitos de sua decisão anterior através de diversos argumentos, dentre eles que tal regime visa à proteção dos adquirentes de imóveis contra eventual insolvência do incorporador, enquanto a recuperação judicial tem como princípio a preservação da atividade empresarial, o que por si só caracterizaria a incompatibilidade sistêmica entre os dois institutos.

O STJ também utilizou o argumento de que “as sociedades de propósito específico que atuam na atividade de incorporação imobiliária e administram patrimônio de afetação estão submetidas a regime de incomunicabilidade, criado pela Lei de Incorporações, em que os créditos oriundos dos contratos de alienação das unidades imobiliárias, assim como as obrigações vinculadas à atividade de construção e entrega de referidos móveis, são insuscetíveis de novação, sendo, portanto, incompatível com o regime de recuperação judicial”.

Para maiores esclarecimentos de eventuais efeitos dessa decisão, ou, ainda, auxílio jurídico nas questões tratadas acima, a equipe de Direito Imobiliário do Escritório Zancaner, Salla, Faustino e Carvalho Advogados está à sua disposição.

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Roberto Cunha